JUDICIÁRIO
PASSA POR MUDANÇA DE PARADIGMA POR CAUSA DA PANDEMIA
Não
é novidade para ninguém no mundo civilizado que a pandemia da Covid-19 desafia
novas formas de organizações de vida, trabalho, interação, entretenimento,
entre outras. Tais desafios vão desde os mais elementares hábitos, como ir ao
mercado, exercitar-se, visitar um parente ou amigo até as mais complexas
reuniões de cúpula das maiores organizações, sejam públicas ou privadas, de
alcance interno ou mundial. Todos, absolutamente todos os seres que vivem numa
sociedade civilizada tiveram, têm ou ainda terão sua vida e sua rotina
afetada/alterada em razão das práticas (necessárias, registre-se) de
distanciamento, monitoramento e isolamento recomendadas pela OMS.
Tal realidade, ouso dizer,
não será temporária, mas definitiva, pois ainda que embora encontremos (e
certamente encontraremos) uma saída imunológica (de qualquer espécie) para o
vírus, seus efeitos sociais serão eternos. Não nos referimos, aqui, somente aos
campos econômico, social ou político — que certamente serão superados
em mais ou menos tempo — mas especialmente no campo comportamental,
em que os novos hábitos que foram desenvolvidos para diminuir os impactos da
pandemia serão, a nosso pensar, colocados de forma definitiva em nossas
vidas.
Na seara do Poder
Judiciário não está sendo diferente. O que era pleito, virou necessidade; o que
era orientação se tornou a única saída; o que era um avanço se mostrou
como elementar. Nas palavras do meu colega Thiago Teraoka, da Vara do Juizado
Especial Cível e Criminal de Mogi das Cruzes, "a necessidade fez o
gato pular". Mas vamos com calma, das últimas para a primeira afirmação.
Quando afirmamos que o que
era um avanço se mostrou como elementar, nos referimos à primeira ferramenta,
ou seja, o processo digital. Ah, o processo digital!!! Aqui, em
particular, me recordo dos idos de 2006, 2007, quando escrevente do TJ-MG, da
1ª Vara Criminal e da Infância de Juventude de Ipatinga, passava os dias
organizando os autos dos processos (autuação, movimentação etc), sendo que
grande parte do dia era "levando e buscando" o expediente ao
gabinete do magistrado. Pilhas e pilhas de feitos levavam horas para
simplesmente serem assinados. Tempos modernos. Hoje, como magistrado, em poucos
segundos, após conferir o expediente, com um simples clique acionamos
nosso cartão digital e bingo! Tempo é vida! É certo que num primeiro momento,
quando idealizado o processo digital, buscava-se dar efetividade e
eficiência ao Poder Judiciário, na missão de consagrar o direito à duração
razoável do processo (artigo 5º, LXVIII, da CR 88). No TJ-SP, o processo
digital tem seus registros no ano de 2006, tornando-se, através do Plano 100%
Digital, uma realidade em 2016. Hoje, em meio à pandemia, os notórios números
de produtividade da corte paulista (da qual orgulhosamente fazemos parte)
têm como fator-chave o processamento digital da maioria do acervo, que
possibilitou a manutenção de grande parte da prestação jurisdicional.
No mesmo norte, ainda que em
números menores, o que até então era uma possibilidade (pouco aplicada) se
tornou a única saída para a tentativa de manutenção do status quo ante.
Estamos falando de outra ferramenta, as teleaudiências. Em tempos
de distanciamento social, a única forma de reunirmos num ato processual o juiz,
o jurisdicionado e os demais atores do processo é através da plataforma
digital. Da mais alta corte aos juízos de primeiro grau a realidade não é
outra. E nesse contexto, embora haja previsão legislativa desde a Lei nº
11.900/200, foi o Código de Processo Civil de 2015 que trouxe de forma expressa
a realização de audiências virtuais. Com efeito, seja pelas tradições forenses,
seja pela inércia dos juízes de se fazer efetivar, seja pelas próprias
condições de partes e atores do processo que, sabemos, se alteram na realidade
do país (aqui, sem dúvida o maior limitador), a ferramenta tecnológica era
pouco usada. Todavia, em razão da atual situação, as audiências por
videoconferência se mostram o caminho sem volta. Reforçadas recentemente pelo
CNJ na Resolução 314/2020 e, no âmbito do TJ-SP, pelo Provimento CG/TJSP
284/2020, a ferramenta da videoconferência tem sido fundamental na busca da
manutenção das atividades jurisdicionais de maneira mais próxima possível de
onde estávamos antes da pandemia. Ressaltamos, ainda no contexto
da teleaudiência, que ela deve ser vista como uma ferramenta, sempre com
norte de auxiliar a atividade jurisdicional e a efetivação do processo, e nunca
contra ele. Explico. Em épocas de isolamento, ela é a alternativa,
mas em eras de normalidade ela deve ser uma opção (a nosso
entendimento, a melhor delas) a ser avaliada casuisticamente, à luz do
jurisdicionado (envolvendo economia, facilidade, eficiência) e não só à luz do
poder jurisdicional.
Por fim, um pleito se
tornou um fato social. Falamos do home office. No caso particular
do TJ-SP, diante da digitalização de grande parte do acervo, somada à realidade
de muitas varas em que, em razão das matérias, atos de audiência são mínimos,
organizava-se, embora sem muita esperança, um pedido para a desnecessidade do
deslocamento aos fóruns. Tempos novos. Em razão da ordem de distanciamento
social, o CNJ editou a Resolução nº 313, estabelecendo, no âmbito do Poder
Judiciário, "regime de Plantão Extraordinário, para uniformizar o
funcionamento dos serviços judiciários, com o objetivo de prevenir o contágio
pelo novo Coronavírus — Covid-19, e garantir o acesso à
justiça neste período emergencial". Diante da realidade local, o
TJ-SP foi mais longe, editando o Provimento CSM 2549/2020, que instituiu o
Sistema Remoto de Trabalho em Primeiro Grau. Os resultados são positivamente
impressionantes. A produtividade de servidores e magistrados do TJ-SP não só se
manteve como subiu cerca de 10% a 15%, chegando a incríveis de 1.251.744
despachos, 1.963.407 decisões e 470.595 sentenças proferidas entre 16 de março
e 10 de maio.
Concluindo, cediço que
quando escreveu sobre fatos sociais Durkheim afirmou que seriam "(...)
uma ordem de fatos que apresentam características muito especiais: consistem em
maneiras de agir, de pensar e de sentir, exteriores ao indivíduo, e que são
dotadas de um poder de coerção em virtude do qual esses fatos se impõe a ele.
Por conseguinte, eles não poderiam se confundir com os fenômenos orgânicos, já
que consistem em representações e em ações; nem com fenômenos psíquicos, os
quais só têm existência na consciência individual e através dela. Esses fatos
constituem portanto uma espécie nova, e é a eles que deve ser dada a
qualificação de sociais". (Durkheim, 2007:2). Complementa o
autor afirmando que são anteriores ao nosso nascimento e de grande dificuldade
de mudança pelo nosso próprio esforço.
Assim, ousarmos afirmar,
num prisma inverso, que uma força externa é capaz de facilitar (e às vezes até
impor) as mudanças que Durkheim afirma ser tão difíceis. E é justamente isso
que estamos vivenciando, uma mudança comportamental advinda de um fator
externo, consubstanciada numa pandemia. Cabe a nós, atores da vida em ação, não
só nos adaptarmos, mas dela retirarmos ensinamentos para seguirmos. E, enquanto
na função de distribuir justiça, temos certeza de que nós, juízes,
continuaremos nos adaptando, nos reinventando e nos valendo de tudo que for
necessário para a manutenção da essencial atividade jurisdicional.
Dr. Tiago Henrique Grigorini atua na Comarca de Panorama